10/11/2016

Janela Int. de Cinema do Recife - Animal Político


 
Quando um filme parece se comprometer com a tentativa de desarranjo formalista, estético, talvez a forma de melhor o posicionar esteja no exercício de incursão em suas próprias urgências. Escapar a um modelo formalista consolidado, qualquer que seja, desarticular abordagens repetidas, mensurar a recepção de certos olhares, é a trajetória motriz de renovação na historiografia do cinema, afinal. Mas tudo que existe nesse processo, inexiste em Animal Político.
A questão é que a urgência mais latente de Animal Político parece ser a de sequer se levar a sério. Assim, a disputa é ganha de saída. Recusando, justamente, uma eloquência estética, causando cisões que não o elevam a qualquer status, Animal Político recusa, obviamente, modelos, mas não se preocupa em propor outros. A impressão que alguns rastros do filme deixam é a de que pretendia ser uma coisa por princípio, tornou-se outra coisa por circunstância. Porque há, sim, em certa substância do filme, ideias muito mais complexas do que a decisão final de usar chroma key de baixo custo ou fantasias de atacado, por exemplo.
Há boas sequencias (o encontro da vaca com o robô) e chaves muito promissoras (o entrave de aceitação da vaca animal continuar sendo a mesma vaca quando representada por uma fantasia). Mas mesmo esses bons, e raros, momentos são tão diametralmente opostos a outros vários, que o desacordo acaba sendo do filme com o próprio filme. Em dados momentos é uma sátira das representações, em outro é uma historiografia de gifs. Em dados momentos é uma anti-narrativa promissora, em outros é um vídeo de jovens hipsters da MTV dos anos 90. No começo é um filme, no resto é zoeira.
Como levar a sério um filme que parece não se levar a sério? Esse é o grande paradigma de animal político. Pois é. Todos os elementos do filme são chaves de estranhamento que não se validam, mais uma vez, como eloquência estética. O procedimento de recusa acaba sendo então realizado na organização do filme como o mais estranho possível a qualquer outro modelo existente, o que o leva, no fim, a lugar nenhum.  
Animal político é, sim, feito para determinados festivais, mirando ser incognita a um determinado tipo, muito específico, de público. Por efeito, infelizmente, parece não ter força para além disso. Porque o enlace com seus meios de propagação faz com que Animal Político parta, ao contrário do que possa parecer, de um lugar estabelecido e seguro. O que nele poderia se configurar risco assumido se transforma em estranhamento concedido.
O filme almeja ser, e é, um objeto fílmico não identificado. Mas limitado única e exclusivamente a recusar sua própria seriedade, transforma-se, no máximo, numa birra estética. Não há sequer uma urgência do estranhamento, porque mesmo para isso seria necessária alguma dialogia entre experiências, do filme e do olhar repousado no filme, o que não existe.
Animal Político não choca, não dialoga, não tem alcance.  O filme é objeto sólido observado sempre de fora. Estranho? Sim. E oco também.

Janela Int. de Cinema do Recife - A cidade onde envelheço



O novo filme da cineasta Marília Rocha, sua primeira ficção, se apoia em duas construções que se sustentam, enlaçadas: o dispositivo de certo naturalismo dramaturgico marca rara e bonita espontaneidade no micro cosmo das experiências desveladas no filme. E a afirmação de uma intimidade prosaica que nunca se engessa, embora exista dentro de um rigor estético maturado pela própria cineasta.
É curioso como A Cidade Onde Envelheço absorve uma abordagem que remete a determinado cinema, europeu sobretudo, organizado pela observação do que, num primeiro momento, parece banal e frívolo. A jornada de estranhamento das duas mulheres portuguesas com os recortes do imaginário brasileiro que identificam é, acima de tudo, muito pessoal.
Formalmente o filme é, sim, estonteante. Interessa ver como o olhar direto e espontâneo de Marília Rocha, em fluidez com as duas atrizes (e coo-roteiristas), sobre a intimidade no seio de uma cidade estranha se ajusta às condições de luz e espaço construídas pela foto de Ivo Lopes Araújo, por exemplo. A direção captura a tradução espontânea da história que conta e, por dentro, a fotografia germina o caráter de uma, pode-se dizer, jornada de afetos.
A questão mais difícil de A Cidade Onde Envelheço é que, partindo de um lugar tão particular e específico, íntimo mesmo na forma como se traduz em cinema, o filme tende a restringir seus diálogos com determinadas experiências, colocando-as num segundo plano.
A cidade onde envelheço parece saber que Neguinho, jovem negro e colega de trabalho de Teresa, é parte constitutiva de outra realidade. Realidade essa que o filme reconhece, honestamente, não acessar. Assim, Neguinho diz estranhar a forma como Francisca fala, ao conhece-la. A distância, uma vez reconhecida, se incorpora no fluxo do filme.
As protagonistas vivem o paradigma de ajuste entre serem estranhas à cidade, cidade essa estranha à elas também. É curiosa, aqui, uma digressão: exercício divertido no filme é perceber a incorporação de signos populares do Brasil num formalismo estético que, junto à naturalidade indissociável das duas protagonistas (são portuguesas), carrega uma atmosfera cosmopolita bastante forte.
Francisca entra no bar. Num frame poderia ser, aquele local, um bistrô francês. No instante seguinte, porém, se revela um bar de esquina que vende litrão de Itaipava. E a atriz também se adapta ao ambiente. Essa simbiose é, no mínimo, intrigante. Ver signos atados a certa atmosfera, projetados agora em outra, aceita aberturas de identificação que estão ali, embora dispostas apenas como pano de fundo.
O que talvez impeça um diálogo mais amplo entre o filme e parcela de quem assiste é que sua perspectiva é muito específica, e parte de um lugar também muito específico, numa lógica que acaba não oferecendo muitas posições além da observação de uma estranheza observada e traduzida pelas protagonistas.
Diálogos que enquadram personagens em campos isolados mesmo quando falam com outras pessoas. A dificuldade de compreensão dos diálogos suprimidos pelo sotaque e pelo tom de sussurro empregado, o espaço que a câmera oferece para que o rigor estético desvele, e não imponha, a intimidade tão cara ao filme.
Assim, o filme de Marília Rocha abre e encerra seu próprio paradigma: será, por essência, objeto íntimo, pessoal e próximo, sim, de determinadas experiências. Será também, porém, e ao mesmo tempo, muito distante ao rigor de outras tantas experiências. Identificadas, talvez, por partes pormenorizadas no filme.
Negocia-se, a todo tempo, sua existência na trajetória entre ser um filme sobre distancias e ser, também, um filme distante. São, então, os referenciais dos respectivos lugares que o olhar de cada pessoa ocupa, no exercício de observação da intimidade amplificada pelo filme, que definem qual dos caminhos pesa mais. Se observamos Teresa e Francisca diretamente (elas raramente se encontram em espaços públicos), elas também nos observam indiretamente (a desordem dos azulejos, a impressão sobre os costumes, e mesmo a experiência de imersão num Brasil punk que emula o fim dos anos 80).
Por isso reconhecer o mérito estético e a qualidade propositiva de A cidade onde envelheço passa por reconhecer algo que, ao menos pra mim, aqui, é tão obvio quanto fundamental: um filme sempre será mais facilmente acessado, mais próximo, digamos, de alguns olhares do que de tantos outros. Uma vez aceito esse fato, o reconhecimento das distâncias pelo próprio filme preserva genuína complexidade.
Tornando interessante o gesto de interpretar a geografia dos afetos que Marília Rocha investiga junto aos movimentos de Francisca e Teresa. Mesmo que a experiência de vida ali exposta, puramente, esteja posta numa incontornável refração, entre o meu olhar (enquanto brasileiro, jovem, negro) e os dramas do filme. Entre a geografia dos meus afetos e aquela presente em A cidade onde envelheço há, sim, um abismo. Que, mesmo abismo, não deixa talvez de ter sua beleza.

Janela Int. de Cinema do Recife - Câmara de Espelhos



 
Câmara de Espelhos, filme dispositivo dirigido pela cineasta Dea Ferraz, parte de uma tarefa sensivelmente espartana: sublinhar a problemática de discursos opressivos que se fortalecem e violentam justamente a medida em que se diluem na organização de determinada estrutura social e cultural. O desafio de sublinhar um inconsciente coletivo (embora nem tão inconsciente assim) de modo a retirá-lo de sua camuflagem e, mais do que isso, expor sua natureza violenta. É um procedimento, por sua própria dificuldade, suscetível a condições dúbias, uma vez que pensa e repensa escolhas o tempo inteiro.

Inicialmente, sob a vigilância do dispositivo (e do olhar de Dea, indiretamente) construído para o filme, parece haver certa medida de cuidado, por parte dos homens observados, a partir de determinadas respostas. Não é o caso de medir a agressividade nas falas (qualquer fala ali sempre será mais agressiva à uma mulher do que a mim, enquanto homem, por exemplo) mas constatar que há um movimento de explicitação crescente da natureza machista dos discursos.

Partiremos de comentários sobre relações de trabalho (quem banca a casa? etc) e terminaremos com a afirmação do feminicidio justificado (se a mulher trai, é passível de morte). A própria trajetória dessas colocações é comum aos espaços que o dispositivo do filme emula (a sala de casa, a mesa do bar, a reunião depois do trabalho). A ideia de vigilância (seja da mulher que os observa, seja da câmera propriamente dita), constrange, a princípio, porque desautoriza a certeza de perpetuação impune daquelas falas, uma vez tornadas públicas.

Câmara de Espelhos tenta, em certa medida, retirar o machismo do status de anomalia social, de tema relacionado ao caráter ou índole. Mas, e esse é o ponto mais fundamental: mesmo numa percepção mais cotidiana, há, reitero, uma crescente explicitação dos discursos violentos dados pelos homens. Perdemos a vergonha. “Perdemos”, aqui, porque se eles lá começam a discursar o machismo mais abertamente, nós cá, na plateia, reagimos também. Uns em silêncio, outros em contorcionismo, e mesmo outros que gargalham. Nossas reações marcam, sim, posições no filme. E não são, definitivamente, arbitrárias a ele. O desenho de som, por exemplo, incentiva esse processo, uma vez que constrói uma atmosfera na qual as vozes no filme e na plateia se confundem.

O valor de Câmara de Espelhos está inserido na sua impossibilidade de encerrar o olhar que repousa na dinâmica do dispositivo. O filme depura o discurso dos homens em cena, mas não os demoniza, porque não se trata aqui de uma individualização da consciência coletiva, mas o inverso. Dea, na direção, não toma essa escolha para preservá-los. Pelo contrário, busca evitar que existam espaços de redenção para os homens que assistem ao filme. A fala daqueles homens sai de suas noções pessoais de mundo rumo ao consenso da estrutura que legitima a violência presente, em maior ou menor grau, nesses mesmos discursos.

A escolha de desnudar, ao menos até a segunda metade do filme, a problemática dos discursos através da chave de acentuar o ridículo ali circunscrito é interessante. Porque não provoca, aparentemente, apenas um tipo de reação: haverá mulheres que darão risada das falas toscas proferidas pelos homens; haverá homens que darão risada por concordarem com a fala dissimulada dos homens na tela. Haverá quem não tenha reação alguma. O dado do riso (mais até, da reação) se justifica porque o filme não quer explicar como as falas capturadas devem ser interpretadas, mas como podem ser, a depender do lugar de quem escuta. Até aqui o filme é poderoso. No entanto, embora frutífero à várias discussões, dois elementos colocam o filme de Dea num impasse.

A figura do ator inserido no dispositivo é um dos elementos. Porque se pensamos na figura do ator como mediador, as falas colocadas pelo sujeito parecem apenas sublinhar tensionamentos que ali já germinam espontaneamente (a fala de um dos homens observados, quando relata sua própria experiência sexual, na parte da “menina que daria pra Cem Homens”, cumpre essa função mais espontaneamente). Porque a mediação do ator anula as idiossincrasias das próprias tensões retidas no dispositivo. Na condição de homem (principalmente, diga-se, se sob os signos de progressista, libertário, consciente) diante do filme, há, sim, uma tendência aberta de proteção moral de boa parte do público masculino na figura do ator (que é, indissociavelmente, intelectual, branco, em suma, um discurso de autoridade). Essa é uma interpretação.

A outra interpretação é a de que o ator nunca fala por si mesmo. Ao replicar as falas que Dea Ferraz articula através de um ponto eletrônico, o argumento em defesa da inserção do ator poderia se dar através de outras perguntas: se fosse a própria diretora no lugar do ator, os homens, lá e cá, lhe dariam o mesmo status de fala? Se fosse uma mulher cumprindo o lugar do ator, haveriam aplausos (fato que presenciei) para ela como há para ele?

Câmara de Espelhos repousa no seguinte dilema: demonizar abertamente os homens inseridos no dispositivo a partir de seus discursos implicaria, talvez, afasta-los como anomalias, transpondo o machismo para uma questão específica de caráter, de índole. Por outro lado, a escolha por imagens que suscitam falas de um machismo “cotidiano”, digamos, implica no risco de atenuar o efeito do dispositivo, ao olhar, de nós, homens que habitamos fora da vigilância do dispositivo. O dispositivo, afinal, não pode punir.

A questão derradeira e mais sincera é pensar, então, se as chaves deixadas em aberto pelo filme, ficam em aberto por falha do próprio filme e seu dispositivo, ou se porque é simplesmente impossível que um filme dê conta de encerrar, em si, toda a complexidade retórica e prática do machismo, por mais que tente, por urgência.


Janela Int. de Cinema do Recife - A moça que dançou com o diabo




Inicialmente, o realismo como signo de legitimidade prévia é a noção que A Moça que Dançou com o Diabo mais recusa. É nesse momento que a suposta ingenuidade do filme se transforma, então, na sua afirmação mais contundente. Há, nesse procedimento, um elogio e um impasse. Comecemos pelo elogio.

A Moça que Dançou com o Diabo não é uma ficção social, mas especulativa (dentro mesmo de um campo da ficção cientifica). Essa defesa é interessante, porque promove a tentativa de outro olhar sobre um tema já muito depurado no cinema brasileiro.
A maior potência do filme está em como a condição retórica do próprio proselitismo religioso (evangélico, sobretudo) cria, embora no caminho inverso, o mesmo procedimento do filme: parte de completas abstrações (Deus, Satanás, o paraíso, o inferno) e os realoca como parâmetros reais para juízos de valor. Ao absorver esses valores como signos reais, o realismo do filme se torna absurdo. A complicação é boa.

O rigor estético do filme inscreve em seu próprio corpo (de imagem e de ação), ao mesmo tempo, a proposição e a recusa de uma noção realista. Assim, o curta usa justamente uma estética realista para recusar discursos de realismo. O final absurdo depende do realismo construído anteriormente para ter força. O filme é sua tese e sua antítese, ao mesmo tempo.
Se o filme se organiza visando seu encerramento (literal e metafórico) no absurdo, parece haver também um limite de efeitos. Com o tempo, a ida das duas jovens que se beijam para o inferno, tem seu impacto atenuado, porque cria uma relação efeito súbito, já que somos, antes, observadores, e não participantes, do fato.

A força da proposta final de A Moça que dançou com o diabo, só volta a ter potência se pensamos que o curta é recorte de um universo maior (no qual o mundo, ao menos pra mim, seria espécie de cartório evangélico), porque proporciona assim pensar que o caso das duas meninas não é isolado, que elas não são as escolhidas, que o encerramento daquela trajetória é, na verdade, parte de uma sistemática maior (toda mulher que beijar outra mulher, naquele mundo, seguirá o mesmo caminho, por exemplo). A Moça que Dançou com o Diabo é curioso, mas cessa a ruptura de seu próprio absurdo, infelizmente, antes de alcançar seu pleno potencial.